O que é possível realizar em 105 dias? Não é tão pouco tempo quanto parece. É mais que os 90 previstos no contrato de experiência regido pelo parágrafo único do artigo 445 da CLT. É tempo suficiente para a gestação completa do roedor da família dos cavídeos a nossa simpática preá. Foi o tempo exato que o aventureiro Ben Saunders levou para completar a expedição da costa da Antártida ao Pólo Sul ida e volta. Foi o tempo que esperei para externar minha opinião neste prestigioso espaço sobre os primeiros meses da gestão da nova diretoria do Bahia. Mantive minhas impressões restritas às redes ditas sociais. Quase rompi o silêncio um par de vezes, mas tomei um prato caudaloso de canja de galinha com cautela. É receita que não faz mal a ninguém, como versou Benjor.
Marcelo SantAna assumiu a presidência uma semana antes do Natal. Não ter bonecos de Judas com sua cara espalhados pela periferia da cidade no sábado de Aleluia, outra nobre data do calendário cristão onde mesmo sem água ainda resiste a tradição da queima do boneco traidor é um grande trunfo. Não faltaria jornal com suas colunas de jornalista para preencher os títeres que serão incendiados à meia noite. Nem faltaria gente disposta a malhar sua embrionária administração. É fácil ser crítico se você se predispõe a criticar tudo. No futebol então, com toda a dose de aleatoriedade que apimenta e apaixona a relação entre clube e torcida, é algo tão simples quanto driblar Chicão na velocidade.
O que reporto como o grande feito da gestão de SantAna até agora não é a classificação para as semifinais do Ednaldão e Lampions League. Não é o futebol consistente e fiel à proposta de protagonista nas partidas. Não são as mudanças gerenciais introduzidas no clube, com a contratação de profissionais de respaldo para diferentes setores do clube, nem a valorização de pessoas daqui neste processo de reengenharia. Não é a aplicação de uma política para base que enxergue os garotos como força motriz no processo de soerguimento do clube com trabalhos unificados com o profissional, contratos que o protejam como futuro e patrimônio do Bahia e planejamento que atenue o impacto para a transição do time de cima. Não é sequer o novo contrato costurado com o consórcio que administra a Fonte Nova, que permitirá ao clube maior autonomia, participação e gerência no ciclo de captação de novos sócios e de retorno do torcedor ao estádio. O grande mérito é ter feito tudo isso até agora tendo como balizador algo que Marcelo repete desde os tempos de crítico e que adaptou ao discurso de candidato: A busca pela identidade, pelo DNA tricolor como ele gosta de pontuar.
A imagem que ficou do Bahia nos últimos vinte anos foi muito mais que de um clube anacrônico, perdido diante das mudanças que o futebol sofreu dentro e fora das quatro linhas. Ficou a imagem de um clube em litígio com seu passado: Perdeu a força regional e caiu para o segundo escalão do futebol nacional; deixou de ser um time vibrante e ousado para murchar para um escrete refém do resultado em campo e de toda a debilidade que tal tipo de estratégia requer: Não basta errar pouco, é necessário que o adversário também falhe e que você esteja preparado para capitalizar tal erro. A casualidade passou a ter uma força descomunal num clube que historicamente se construiu avassalador: Em três décadas já era o maior vencedor do Estado e era campeão nacional. Mais que simplesmente uma queda brutal dos resultados em campo o último terço da história do clube criou um arranhão na forma que a torcida, mídia e dirigentes enxergam o Bahia: Passou a ser um fantasma de si mesmo.
Tenho o exemplo prático dessa transmutação do clube dentro de casa. Meu pai parou de frequentar estádio no final dos anos 90, aborrecido não com resultados, mas com a passividade do time. Segui indo sozinho à Fonte e sempre que voltava ele provocava: Gostou do SEU time? Nunca deixou de torcer e acompanhar, mas criou um afastamento para manter o mínimo de empatia com a instituição. Minha filha, 15 anos, já tem outra relação com o time: Torce freneticamente e gostaria de ir em todos os jogos, mesmo tendo vivido a pior fase do Esquadrão. A paixão do torcedor prescinde de resultados, mas cultivar a identidade do clube, fazer com que o orgulho suplante as agruras dos placares adversos é fundamental para o fortalecimento da instituição.
Nesses três meses, curiosamente, as grandes polêmicas do clube gravitaram em torno desta busca pela identidade: O retorno da cruel paixão da torcida não concretizada; a conversão do garoto torcedor do rival tal qual Paulo na estrada de Damasco – Fez-se a luz e as trevas rubro-negras dissiparam da vida do impúbere; a falsa musa destituída pela afinidade com as cores rivais, não sem antes rebatizar nosso artilheiro do ano: KINHEZO!
A nova diretoria parece entender que buscar a reaproximação com a identidade esquecida no passado é o molho que vai amalgamar a receita de gestão que planejaram: Responsabilidade com finanças, fortalecimento e aproveitamento da base, protagonismo nos jogos e cumplicidade no tratamento da torcida. Modernidade na gestão, atavismo na relação com a arquibancada. Resultados em campo reconhecidos como consequência, não como causa desse processo.
É cedo demais para se empolgar, é justo criticar as derrapadas que sempre existirão (alô Chicão!) mas não há como negar que o Bahia de agora demonstra ser mais cônscio da sua verdadeira personalidade e pujança: Aquela que emana do povo que veste azul, vermelho e branco. Trazer a torcida para participar dessa retomada é mais que uma estratégia: É a única saída possível.
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