é goleada tricolor na internet
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Publicada em 4 de dezembro de 2014 às 00:00 por Autor Genérico

Autor Genérico

O insepulto

Não gosto de acordar cedo. Nada contra a brisa matinal, o orvalho que umedece o ar e o chilrear dos pássaros. Essa foi minha rotina interiorana até os 14 anos. Hoje sou um ser notívago. Tenho muito sono – e mau humor – de manhã. Mas o labor, e as contas a pagar, me obrigam a tal dissabor vez por outra. Numa destas manhãs, ressaqueado com mais uma ‘traulitada’ que o Esquadrão levou na Fonte Nova, confessei ao colega de hospício que aguardava a condução a meu lado:

– O Bahia não tem mais chance nenhuma de salvação. É dispensar as carniças e planejar a série B 2015.

Para minha surpresa, abruptamente, a janela da guarita do condomínio foi aberta. De lá, vociferou o porteiro, pondo a cara para fora, olhos rútilos e baba escorrendo:

– Você não é torcedor do Bahia, né? Não pode ser! Torcedor do Bahia não desiste nunca! O Bahia não vai cair! Olhe o que eu te digo, o Bahia não vai cair!

De início retruquei, meio contrariado com aquela intromissão tão descortês – não sou partidário desse hábito baiano de meter o bedelho na conversa alheia sem pedir licença. Depois achei melhor seguir o velho conselho da boa convivência com atarantados – “não vou bater palma pra maluco” – e deixei que ele pregasse com a mesma eloquência que os engravatados da Praça da Piedade anunciam o fim do mundo. Vai que é contagioso…

Todo torcedor tem a plena convicção que é seu amor, seu otimismo que conquistam o resultado pro time. Mesmo quando o time não é competente para vencer e depende do resultado dos outros. Aí é que a força de vontade se multiplica. No caso da torcida do Bahia, uma das mais narcisistas que eu conheço, isso é elevado à enésima potência. Após a derrota para o Atlético Paranaense [a quarta morte do Bahia nesse brasileiro, após os açoites de Chapecoense, Palmeiras e Corinthians], Ventura Lima, um nobre advogado companheiro de resenha tricolor em rede social, repetia como mantra “O Bahia não vai cair” a cada dois minutos. Assim o fez durante toda semana, em intervalos maiores, até que o Bahia venceu o Grêmio e conseguiu uma sobrevida. Tive que me render à tamanha força mental. E mesmo que o Bahia caia [toc, toc, toc] ele já ganhou a minha admiração. Assim como o dever do profeta não é acertar, e sim profetizar, o dever do torcedor é acreditar. No fim das contas, admiro esses bons cristãos de fé.

Faço parte da minoria gramsciana da torcida “pessimismo na razão, otimista na vontade”. Faço os piores diagnósticos desejando ser contrariado. Trago minhas expectativas para próximo de zero, naquele ponto onde cruza a abscissa e a ordenada. Por ter o Bahia me tornado um expert em rebaixamento, tive a natureza embrutecida. Fico mais retado do que triste com a queda. Só senti um nó no peito quando William Andem – 1,88m de folclore e carisma – desabou no choro naquela noite fria de 1997. Depois dali nem eu, nem o Bahia fomos mais os mesmos. Todo o choro de rebaixado que eu vejo depois daquela cena me soa falso. Ninguém nunca chorou de forma tão incontida, a boca aberta, as mãos gigantes na cabeça, os olhos esbugalhados, como Andem. No outro dia ele partiu e colocou o clube na justiça. Certíssimo ele, frise-se.

Em 2003, por exemplo, eu fiquei catatônico. Única coisa que gritei no jogo foi pra que o juiz expulsasse Valdomiro. Miserável fez três pênaltis. Não lembro se ele chorou. Se chorou foi de vergonha. Eu, no lugar dele, choraria. Mentira. Fingiria uma contusão para sair mais cedo. Gosto de sair à francesa.

Nesse brasileiro o Bahia tem feito o papel do “defunto insepulto”. É uma espécie de Quincas Berro D’água que morreu várias rodadas atrás mas não foi enterrado porque a fé da torcida [e a incompetência dos rivais] o mantém de pé, perambulando pela cidade, tomando cachaça na bodega, dançando bolero no brega, sem pagar conta. É um morto muito louco. Há um aspecto positivo nesse roteiro arrastado. Apesar de todo os vexames, dos times ruins que já teve, o Bahia nunca entrou para disputar uma partida oficial já rebaixado. Sempre teve um motivo, mesmo tênue, para lutar. Que lute. Que morra atirando. Que só pare de se debater quando a última pá de cal desabar sobre o caixão.

Apesar do cheiro pútrido de cadáver em decomposição, todo mundo tá esperando o momento que a rocha se moverá e o defunto sairá de braços erguidos. Estropiado, porém vivo. Domingo às 18 horas. Eu não acredito em milagres. Mas rezo para que eles aconteçam.

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