Tradição inventada é um conceito abordado no livro “A Invenção da Tradição”, de 1983, organizado pelos historiadores britânicos Eric Hobsbawm e Terence Ranger, e se refere a práticas culturais que são apresentadas como antigas e enraizadas, mas que, na realidade, foram criadas recentemente. A patrulha generalizada em torno do uso da palavra “vitória” para se referir aos resultados positivos conquistados pelo Bahia dentro de campo – impondo-se, em substituição, o uso do sinônimo “triunfo” – é um típico caso de tradição inventada.
Para alguém que não acompanha de perto e a fundo o Esquadrão de Aço, ou para as crianças e adolescentes tricolores de hoje, a necessidade de se referir às vitórias do Bahia como “triunfos” pode parecer uma norma em vigor desde tempos imemoriais, mas a realidade é bem diferente disto: ela começou a engatinhar há cerca 8 anos e se tornou generalizada há ainda menos tempo, pelos idos de 2018 e 2019. Inicialmente, era uma simples brincadeira de certos torcedores, que foi ganhando corpo até virar norma e praticamente se tornar uma política institucional.
Sou torcedor do Bahia desde 1994 e sei que, até pouco menos de uma década atrás, não havia qualquer tabu em torno do uso da palavra “vitória” para se referir aos resultados exitosos do Bahia nas partidas e ela era, de fato, ampla e normalmente empregada, inclusive por jogadores, treinadores e dirigentes tricolores. Para que não restem dúvidas, disponibilizei, ao fim do texto, diversos links de entrevistas anteriores a 2017, nas quais a palavra “vitória” foi utilizada com muita naturalidade por variados personagens do Bahia.
A norma do “vitória não, triunfo!” e a patrulha em torno dela têm trazido efeitos absolutamente deletérios, e o momento de seu surgimento foi particularmente infeliz e inoportuno. Explico as razões a seguir.
Após viver uma década de trevas (2003-2013), marcada por rebaixamentos, humilhações, longas secas de títulos e prolongada ausência da elite do futebol brasileiro, bem como por uma inédita hegemonia acachapante do rival, o Bahia conseguiu, em 2013, fazer uma revolução que representaria um ponto de viragem em sua história, ao expulsar os tiranos que levaram o clube à quase ruína e conquistar a tão ansiada democracia. A partir de 2014, o Bahia equilibra forças com o Vitória e, a partir de 2018, passa a estar claramente em um patamar acima do rival, vencendo muito mais clássicos, conquistando muito mais títulos e estando invariavelmente em posições acima ou mesmo divisão acima no cenário nacional. A transformação do Bahia em SAF, com a chegada do Grupo City em 2023, ao que tudo indica, tornou intransponível o fosso que separa o Bahia do Vitória.
Contudo, paradoxalmente, logo no momento em que o Bahia começou a se descolar novamente do rival, a estar firmemente em prateleiras superiores, a norma do “vitória não, triunfo!” ganhou corpo e se consolidou. O Vitória caiu para a Série B em 2018 e ficou 5 anos em divisões inferiores ao Bahia, e nesse mesmíssimo período (2019-2023) não conseguiu nem mesmo se classificar na primeira fase do semiamador Campeonato Baiano um ano sequer, enquanto o Bahia acumulava títulos. Os clássicos Bavi se tornaram escassos.
O que aquele momento pedia? Que, ao menos na postura pública, o Bahia e sua torcida deixassem o Vitória esquecido, humilhado e soterrado por sua própria insignificância. Mas justamente o contrário disto foi feito: surgiu a norma do “vitória não, triunfo!” e toda uma patrulha em torno dela, que trouxeram como efeito manter o Vitória sempre lembrado e empoderado. Um grandessíssimo tiro no pé.
Vi, inúmeras vezes, em transmissões de jogos do Bahia na elite do futebol nacional, os narradores do eixo Rio/SP comentarem, após o insistente e antinatural emprego da palavra “triunfo” nas entrevistas dos jogadores: “é… os jogadores do Bahia têm que falar ‘triunfo’, porque VITÓRIA é o rival”. A certa altura, muitos narradores e comentaristas da imprensa do eixo passaram a se corrigir automaticamente nas transmissões e resenhas sobre o Bahia: “vitória não, triunfo! Não pode falar vitória, porque VITÓRIA é o rival!”. O mesmo aconteceu este ano, reiteradas vezes, nas transmissões de nossas partidas e resenhas sobre o Bahia na Libertadores, uma competição da qual o Vitória nunca passou perto.
Igualmente, já vi muitos comentaristas e influenciadores fazendo comentários interessantíssimos sobre êxitos do Bahia, nas redes sociais, seja sobre aspectos técnicos/táticos ou sobre a evolução recente do clube, e tendo a caixa de comentários inundada por dezenas ou mesmo centenas de comentários de torcedores tricolores, do tipo “vitória não, triunfo!” ou “É TRIUNFO”, apenas porque o autor da postagem se referiu ao êxito do Bahia usando a palavra “vitória”. Notem: torcedores tricolores deixam de comentar e curtir a repercussão dos êxitos do Bahia propriamente ditos, para dar centralidade a um rival bem menor que ele em tudo, hoje e historicamente. Ademais, tal postura tem o potencial de angariar a antipatia desses comentaristas e influenciadores que estão pautando o Bahia, ao invés de lhes cativar. É um completo desserviço.
Vejam, portanto, que, desde quando o Vitória estava penando na Série B, ou mesmo na Série C, o Bahia fornece a ele o melhor serviço de marketing gratuito possível! E segue fornecendo: o Bahia vive um momento de lua-de-mel com sua torcida, fez uma campanha digna na máxima competição continental, habituou-se a disputar o Brasileirão na parte de cima da tabela, segue vivo em todos os torneios que disputa; não obstante, com a nefasta norma/patrulha do “vitória não, triunfo!”, insiste em fazer de seu próprio sucesso um palco gratuito para seu rival – hoje mesmo afundado na zona de rebaixamento e eliminado de todas as competições – brilhar. Poderia perfeitamente virar um case sobre “o que não fazer” em manuais de marketing. É como se a Coca-Cola vivesse dando indiretas e alfinetadas na Pepsi, em suas propagandas. Ou, saindo do marketing para a astronomia, é como se a Terra orbitasse em torno da Lua.
A tradição inventada do “vitória não, triunfo!” traz mais efeitos nefastos. Ajuda a massagear a autoestima do Vitória e de sua torcida nos momentos difíceis que vêm atravessando nos últimos tempos, fazendo-os se sentirem empoderados e importantes. Não à toa, o lema da maior torcida organizada do Vitória é: “temidos a ponto deles (sic) se recusarem a dizer nosso nome”.
Outro efeito danoso e constrangedoramente nítido é o desconforto, engessamento e autopatrulha constantes de nossos jogadores e membros da comissão técnica ao darem entrevistas, sempre se policiando para não dizer “vitória” – simplesmente a palavra mais comumente empregada na língua portuguesa para se referir a resultados positivos -, e tendo de se corrigir e se desculpar sempre que a palavra tabu escapole, reforçando o marketing gratuito para o rival, bem como sua autoestima. Se eu, vendo as entrevistas, acho tudo isso desconfortável, constrangedor, antinatural e sufocante, imaginem como se sentem os jogadores e comissão técnica a esse respeito. A energia despendida nisso poderia ser canalizada para o foco exclusivo nas grandes campanhas e nos grandes títulos. A tradição inventada do “vitória não, triunfo!” e a patrulha em torno dela, portanto, são tóxicas e disfuncionais até mesmo para o ambiente e a atmosfera do clube.
A norma do “vitória não, triunfo!” é um desserviço em muitos aspectos e já passou da hora de ser descontinuada. Idealmente, nunca deveria ter existido. Muito antes de ser o nome do rival, “vitória” é uma palavra da língua portuguesa, que pode e deve ser usada naturalmente por tricolores para se referir aos êxitos do Bahia dentro de campo, como quase sempre foi, da mesma forma como é empregada para, por exemplo, se referir à capital do Espírito Santo ou ao bairro de Salvador. E isto em nada inviabiliza nosso sentimento de rivalidade, como nunca tinha inviabilizado antes de a norma e a patrulha do “vitória não, triunfo!” entrarem em cena. Rivalizar é natural e saudável, mas não deve ser confundido com dar protagonismo ao rival, especialmente quando se trata de um rival muito inferior, hoje e historicamente, como é o nosso.
Infelizmente, não é possível voltar no tempo e desfazer o estrago que já está feito, mas é possível repensar e descontinuar essa prática nefasta daqui por diante. O pior é que a maior parte da torcida não parece se dar conta do quão prejudicial o “vitória não, triunfo!” tem sido e a questão é muito menos problematizada do que deveria. Espero, com esta coluna, dar minha contribuição para trazer essa questão à luz e devolver a tradição inventada do “vitória não, triunfo!” para o limbo de onde nunca deveria ter saído.
APÊNDICE
- Vídeos de jogadores e treinadores do Bahia chamando, naturalmente, os resultados positivos de “vitória”:
- 2002 – entrevista de Carlinhos antes de partida contra o Gama
https://youtu.be/kR4vgUshI-o?si=AM48NFlm3f9Vna2T - 2003 – entrevista de Preto Casagrande após partida contra o Vasco (aos 1:59:30)
https://youtu.be/zXACAeITyFU?si=HfjiePjphlOedQG9 - 2011 – entrevista coletiva de Dodô (aos 0:45)
https://youtu.be/NS2z4tWlCSU?si=aylmKEeUfuYCfqFg - 2011 – entrevista de Joel Santana após partida contra o São Paulo (aos 1:47)
https://www.instagram.com/reel/DJ-SdGUpOxj/?igsh=MWcyZ28xdW56Z3VkNA== - 2012 – entrevista coletiva de Fahel
https://youtu.be/FXKeKu3j9TQ?si=H5KmESez4pEv9NWD - 2013 – entrevista de Feijão (cria da base e torcedor do Bahia) após partida contra o Inter
https://youtu.be/sacsptMhNMo?si=YJoYF82vcfyHUbXa - 2016 – entrevista coletiva de Thiago Pagnussat (aos 1:35)
https://youtu.be/zzqkSeMsR_g?si=mGXeStxURiwd3h7-





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