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Tragédia da velha Fonte continua sem culpados

Notícia
Historico
Publicada em 5 de março de 2013 às 12:02 por Da Redação

De André Uzêda, especialmente para o blog impedimento.org:

Foto: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil” width=

“Os flashes espoucaram no rosto de Raimundo Nonato, 50 anos, tão logo adentrou as comodidades climatizadas do Camarote Expresso 2222, bem localizado na entrada do circuito Dodô (na Barra-Ondina). Era sexta-feira de Carnaval de 2013, segundo dia da folia soteropolitana e primeiro de execução da tradicional cabina de numeral repetido, que tem como anfitrião o ex-ministro da Cultura e espécie de baluarte canône da Bahia, Gilberto Gil.

Apesar de, desde 2007, Raimundo Nonato possuir um cargo público, ao ter sido empossado como gestor da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), logo no primeiro ano de mandato do governador Jaques Wagner (PT), os cliques fotográficos prestavam reverência às suas atividades anteriores a administração da autarquia esportiva. Na vida pregressa ao formalismo litúrgico do cargo burocrata, ele atendia pela alcunha de Bobô, apelido ganho na infância fruto da critatividade de sua irmã caçula. Virou um herói envergando as cores do Esporte Clube Bahia, ao conquistar, no estádio do Beira-Rio, o título brasileiro de 1988 pelo tricolor, após empate sem gols na decisão diante do Internacional.

A idolatria que julgava ser eterna ganhou, porém, contornos nebulosos. Em 25 de novembro de 2007, o Bahia jogava sua despedida da Série C daquele ano, no hexagonal final do torneio. Pela combinação de resultados, bastaria um empate contra o Vila Nova, de Goiás, para confirmar o resgate tricolor do então mais obscuro porão do futebol brasileiro – a CBF só viria criar a Série D, por decreto, em 2009.

Segundo relatos de torcedores presentes, próximo aos 25 minutos do segundo tempo, no anel superior da antiga Fonte Nova, à direita onde de maneira costumeira montava guarda a Torcida Organizada Bamor, gritos de desespero precipitaram uma clareira na multidão. Uma laje de concreto medindo 5 x 0,78 metros cedeu, abrindo um vão estreito suficiente para derrubar 11 pessoas, em queda livre por quinze metros até o baque surdo com o solo. Das vítimas, seis morreram no instante exato do impacto. A última, que viria completar o cabalístico número de sete infortunados pelo acidente, veio a óbito no percurso até o mal-sucedido resgate no Hospital Geral do Estado (HGE).

Perderam suas vidas naquela tarde de ‘festa araque’, pois, desconhecendo até aquele momento a recém-consumada desgraça, muitos, em virtude do sucesso do Bahia, ignoraram o luto em favor dos festejos: Márcia Santos Cruz, Joselito Lima Júnior, Milena Vasques Palmeira, Djalma Lima Santos, Anísio Marques Neto, Jadson Celestino Araújo Silva e Midian Andrade Santos.

Os dias que sucederam a alardeada “maior catástrofe do futebol brasileiro” foram de dolorosos funerais, rótulos de tragédia anunciada e uma guerra visceral nas dependências da Sudesb – com tutela de responsabilidade administrativa e zelo da Fonte Nova. Nilo Júnior, engenheiro e diretor de operações da autarquia, e Bobô trocariam acusações mútuas sobre supostos relatórios, anteriores ao acidente, que indicavam o colapso da praça e a necessidade imediata de interdição. O primeiro acusou publicamente o segundo de ter agido com negligência aos laudos periciais, que, segundo Nilo, demonstravam o latente mau estado de conservação do equipamento esportivo – argumento prontamente negado pelo superintendente.

O governo viria a utilizar em sua defesa que herdou uma Fonte Nova sem jamais ter recebido um reparo estrutural sequer, isto desde sua inauguração, em 1951. A única grande obra desde o début oficial do estádio (que não foi restauração) ocorreu exatos vinte anos após o mesmo, no governo do general Médici, durante a Ditadura Militar. Naquela ocasião, que já entraria para a história com digitais fúnebres, foi acrescido o anel superior à estrutura existente. Marcou-se uma rodada dupla (Bahia x Flamengo; Vitória x Grêmio) para inaugurar a obra anexo.

Era 4 de março de 1971. Um refletor estorou durante o jogo do Rubro-Negro provocando histeria simultânea. Da catarse coletiva derivaria-se pisoteio, confusão e pânico. Calculou-se, com descontos da penumbra que envolvia o regime político, 2.086 feridos e dois mortos. Ninguém foi criminalmente responsabilizado por aquela tragédia. Como seria comprovado anos adiante, a inapetência jurídica mantinha cadeira cativa no anel superior da Fonte Nova.

Foto: Manu Dias/AGECOM” width=

Bobô (à esquerda), com integrantes da Federação Baiana de Futebol e o governador Jacques Wagner (PT): ex-jogador foi absolvido na esfera criminal, mas ainda responde por improbidade administrativa

Justiça tarda

Bobô e Nilo terminariam sendo formalmente acusados pelo Ministério Público do Estado da Bahia, ainda em 2007, em duas ações distintas. A primeira por homícidio culposo – sem a intenção de matar – e, a segunda, por improbidade administrativa, de acordo com a promotoria por terem destinado “uma verba de R$ 1,6 milhões para realização de obras de fachada, quando tinham consciência da necessidade de efetivação de reformas estruturais no estádio”.

Para o desgosto dos familiares das vítimas, as sanções criminais não surtiram efeito ansiado, mesmo após apelo em segunda instância. Em agosto de 2009, quase dois anos depois da tragédia, o juiz substituto da 10ª Vara Crime de Salvador, José Reginaldo Nogueira, absolveu os dois réus por entender que não “havia indícios de negligência”.

A sentença classificou o ocorrido como “trágico acontecimento”, além de ressaltar que:

“em tema de delito culposo, tem sido sempre entendido que a culpa deve ser provada acima de qualquer dúvida razoável, não se admitindo a sua demonstração por presunções ou ilações dedutivas, sendo, no caso em tela, incabível falar em culpabilidade em razão da prova produzida, que não evidenciou qualquer ato positivo dos réus que tenha contribuído para o fim trágico”.

Dois dias seguintes ao resultado, o MPE recorreu da decisão, por meio do promotor Maurício Cerqueira. O caso só foi a novo julgamento em julho de 2010, desta vez conduzido pelos dedos da magistrada Aidil Conceição, na Segunda Câmara Criminal da Justiça da Bahia. O resultado viria a ser o mesmo proferido pelo seu par de toga, quase um ano antes: absolvição dos réus.

“A desembargadora manteve a sentença absolvitória e logo depois se aponsentou. Estranho, né?… Você deve se lembrar dela, foi uma que recebeu um anel de presente e depois teve que devolver, pois descobriu que isso influenciava na eleição do tribunal aqui na Bahia (silêncio)… Ela passou a ser chamada nos bastidores da justiça de ‘A Senhora dos Anéis’….”, inicia conversa o promotor Maurício Cerqueira, que segue crítico: “O processo criminal da Fonte Nova hoje está encerrado. Pois não foi encaminhado para recurso em Brasília. Havia um prazo de 15 dias da promotoria para isso, o que não foi feito. Só não me pergunte a razão disso, porque não sei. Atuei no primeiro grau do caso e nós encaminhamos o pedido para que fosse recorrido em outra instância, como de praxe… (novo silêncio)… O problema da Bahia é a impunidade…”, desabafa, por fim.

A desembargadora Aidil Conceição foi procurada pela reportagem para comentar o assunto, mas não foi encontrada.

O segundo processo movido pelo MPE, o cível, que imputa aos acusados mau uso do erário, tramita na 5ª Vara da Fazenda Pública de Salvador. A última movimentação da ação ocorreu em julho de 2011. “As partes já foram ouvidas, mas o processo ainda está em seu funcionamento natural. Ainda não é possível saber em quanto tempo ele será julgado, infelizmente para todos nós”, justifica a promotora Rita Tourinho, integrante do Gepam Bahia (Grupo de Atuação Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa).

Diante dos entraves jurídicos, a voz embargada de Elias Santos, pai da vítima Midian Andrade Santos, tensiona uma assertiva social: “Minha filha era funcionária da C&A, tinha outro torcedor que também perdeu sua vida que era gari. Só morreu gente do povo, meu filho. E por isso ninguém foi culpado, tenha certeza disso. Se fosse alguém rico, com certeza estava atrás das grades ou pagando multa. É muito triste para um pai saber que as coisas funcionam desse jeito”.

As reminiscências do passado reabrem cesuras ainda não cauterizadas. Seu Elias tenta abafar a emoção. “Não saberia dizer onde e nem o que minha filha estaria fazendo se fosse viva hoje. Ela foi tirada de mim e nada pode mudar isso. Nada! Todo dia faço um esforço enorme para entender que ela nunca vai voltar… Por outro lado, tomei desgosto pela Fonte Nova. Sei que estão construindo outra e tudo mais, só que nem quero passar perto. É emoção demais para um velho pai”, diz.

Foto: Ronaldo Silva/AGECOM” width=

A velha Fonte Nova, palco de glórias e tragédias, foi abaixo em 2010

Tudo resolvido

Pelo texto do Estatuto do Torcedor, sancionado em 2003, pelo então presidente Lula, foi estabelecido um seguro para todo “torcedor portador de ingresso, contra acidentes pessoais válido a partir do momento em que ingressar no estádio”, conforme explicitado no 2º paragráfo do artigo 16 da lei.

As vítimas fatais da Fonte Nova receberam a quantia de 25 mil da seguradora Excelsior, detentora da apólice em contrato com a CBF. “Cinquenta por cento ficou com os cônjuges das vítimas e o restante para ser dividido pelo número de filhos. Apenas uma família ainda não recebeu o valor completo. Pois há uma ação na justiça de um companheiro que também reivindica uma parte”, diz Nelson Uzeda, superintendente executivo da seguradora.

Ao Estado da Bahia, como administrador da Fonte Nova, também coube uma indenização, em pensão vitalícia, no valor de um salário mínimo mensal (reajustável) – para os familiares das vítimas e para os sobreviventes do acidente, com comprovadas sequelas físicas e/ou emocionais. A lei estadual (nº 10.954) que estabeleu essa quantia foi criada um mês após a tragédia.

“Sabemos que é uma quantia pequena, ainda mais para quem teve a dor de perder um familiar. Mas era o que tinha sido estabelecido. E, ainda bem, está tudo resolvido”, aponta Uzeda.

Foto: Nilton Souza/Arena Fonte Nova” width=

Visão aérea da Arena Fonte Nova em fevereiro de 2013, pouco mais de um mês para a inauguração

Arena, eleições e isolamento

Metade de uma década transcorreu silenciosa desde a ruptura do degrau definitivo da Velha Fonte. O estádio viria completamente abaixo pelo poder de 700 quilos de dinamite, em agosto de 2010. Os 17 segundos de um estrondo de 134 decibéis que anteciparam a derrubada do concreto, porém, foram abafados por um comedimento suspeito.

Hoje, está completamente erguido no jazigo do antigo estádio uma nova estrutura. Com aparência de maior conforto, tecnologia embalada por rótulos de sustentabilidade e padrão Fifa, acresceu-se na paisagem de Salvador a Arena Fonte Nova, praticamente pronta para receber jogos da Copa das Confederações, em junho de 2013, e do Mundial de 2014 – o equipamento aguarda apenas a data de sete de abril para estrear.

O novo estádio, porém, não faz reverência às vítimas de uma tragédia que, embora temporalmente próxima, parece ter sido arrolhada a uma garrafa de vidro e atirada às águas esverdeadas do Dique do Tororó. No centro de visitação, próximo à obra, aberto para visitantes que ensejavam acompanhar a evolução física da construção, faltavam referências, em painéis, àquele trágico 25 de novembro. No mesmo mural, sobravam citações a proezas ocorridas na Fonte Nova, como o quase gol mil de Pelé, em 1969, ao heptacampeonato histórico do Bahia, aos jogos da Seleção Brasileira e aos Ba-Vis épicos…

“A Fonte Nova talvez seja uma das partes mais importantes da minha vida. Em alegrias e tristezas. Não poderei nunca escapar disso, nunca”, reflete Bobô, após insistentes provocações da reportagem, em entrevista feita por telefone dias após o carnaval.

“Mas você talvez seja o personagem mais impactante da história do estádio, não? Lá, como jogador, foi Campeão Brasileiro. E depois, como dirigente, foi indiciado, e absolvido, pela morte de sete pessoas. Além de ter participado do projeto de demolição e reconstrução do estádio…”, questionava o enunciado, que resultou na emotiva resposta.

Raimundo Nonato é virtual candidato a concorrer, ano que vem, a uma das 63 vagas da Assembleia Legislativa da Bahia, pelo PCdoB, partido ao qual se filiou há dois anos. A campanha política seria um dos motivadores de suas aparições públicas mais frequentes, como a visita ao camarote de Gil durante a folia deste ano. “Ainda é muito cedo para falar disso, mas se existir essa condição, pode, sim, acontecer”, diz, ainda sem confirmar. Caso, porém, venha a ser condenado na ação cível movido pelo Ministério Público, Bobô teria que abortar a principiante carreira política. Entre as sanções previstas na ação, junto com ressarcir o tesouro público, está a perda dos direitos políticos (de votar e ser votado) por cinco anos.

Nilo dos Santos Júnior foi exonerado da Sudesb, ainda em 2008, apregoando à imprensa baiana perseguição política. Atualmente reside no interior da Bahia e tem se mantido incomunicável. Houve notícias de que processaria o Estado pelo afastamento de função a qual foi submetido. Nada que conste ainda nas atas de consulta processual do Tribunal de Justiça da Bahia. Ele também ainda responde ao processo administrativo ajuizado pelo MP, que tramita adormecido na 5ª Vara da Fazenda Pública.

A maioria dos familiares das vítimas foram aconselhados pela assistente social, que presta amparo psicológico, a não falar mais sobre o assunto, para evitar a exposição de traumas. No dia da inauguração da Arena Fonte Nova está previsto um ato em homenagem aos que despencaram para a morte em um ‘distante’ domingo vermelho magenta.

Sem culpados em tribunais, ações administrativas atadas em trâmites intermináveis, promoções políticas e um novo estádio asséptico àquela tragédia, cumpre-se inversamente o jargão juscelinista: “Cinco anos em cinquenta”.

As fotos são de: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil, Manu Dias/AGECOM/Governo da Bahia, Ronaldo Silva/AGECOM/Governo da Bahia e Nilton Souza/Arena Fonte Nova”.

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